Refugiados climáticos e um planeta inabitável: Os alertas do novo relatório do IPCC

Refugiados climáticos e um planeta inabitável: Os alertas do novo relatório do IPCC

Petrópolis, 15 de fevereiro de 2022. Em pouco mais de 3 horas, mais de 230 milímetros de chuva atingiram parte da Cidade Imperial, no Rio de Janeiro. É o maior volume de chuva registrado em quase um século de medições. Mais de 230 pessoas perderam a vida em deslizamentos de terra e enchentes. Outras milhares perderam tudo. Não é a primeira vez que isso acontece e, infelizmente, não será a última.

Os impactos no clima estão cada vez mais visíveis e podem ser irreversíveis.” Quem diz isso é o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Publicado no último dia 28, o relatório do Grupo de Trabalho II é a segunda parte do Sexto Relatório de Avaliação (AR6) do IPCC, que será concluído este ano. Segundo os dados mais recentes, cerca de 40% da população mundial é “altamente vulnerável” ao clima. Divulgado apenas quatro meses depois da COP26, reunião que ocorreu em Glasgow, na Escócia, o relatório do IPCC afirma que durante as próximas duas décadas, a sociedade humana enfrentará uma série de riscos climáticos inevitáveis e provocados pelo aquecimento global de 1,5°C. Mesmo se excedido por pouco tempo, este nível de aquecimento gerará impactos adicionais severos, alguns dos quais serão irreversíveis.

Em agosto de 2021, o relatório do IPCC já havia sinalizado que ações contra mudanças climáticas são urgentes. Os últimos 8 anos foram os mais quentes já registrados e a temperatura do planeta já aumentou 1,07° C em relação ao período pré-industrial (1850-1900). Isso significa que estamos próximo do limite. Quando o relatório do IPCC foi publicado em 2013, foi considerado o limite de aumento 1,5° C como a última alternativa. Para isso, as emissões de CO2 precisam ser reduzidas pela metade até 2030 e zeradas até 2050. No entanto, o penúltimo relatório foi apresentado que, independente das nossas ações no cenário atual, atingiremos o limite em 2040.

O tom alarmista é necessário. “Este relatório é um alerta terrível sobre as consequências da inação (…) Este relatório reconhece a interdependência do clima, da biodiversidade e das pessoas e integra as ciências naturais, sociais e econômicas mais fortemente do que as avaliações anteriores do IPCC”, disse Hoesung Lee, presidente do IPCC. O documento alerta que, para evitar a perda crescente de vidas, biodiversidade e infraestrutura, é necessária uma ação ambiciosa e acelerada para se adaptar às mudanças climáticas, com cortes rápidos em emissões de gases do efeito estufa. “Nosso relatório claramente indica que lugares onde pessoas vivem e trabalham podem deixar de existir, que ecossistemas e espécies com que nós crescemos e que são centrais para nossas culturas e compõem nossas línguas podem desaparecer”, afirmou a professora Debra Roberts, co-presidente do IPCC.

“O relatório do IPCC de hoje é um Atlas do sofrimento humano é um testemunho constrangedor de falta de liderança climática”, afirmou António Guterres, secretário-geral da ONU, durante a abertura da entrevista coletiva na qual os resultados foram apresentados. Além de culpar governos pela apatia no tema, Guterres pediu a eliminação do carvão mineral até 2040 e criticou o greenwashing do setor privado, que faz promessas, mas não toma atitudes para zerar as emissões até 2050.

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Os autores, porém, dizem que ainda existe uma pequena janela de tempo para que o pior seja evitado. “Uma das coisas que eu acho que são realmente, realmente claras no relatório é que sim, as coisas estão ruins, mas na verdade o futuro depende de nós, não do clima”, afirma Helen Adams, da universidade King’s College, de Londres, e uma das principais autoras, em declaração para a BBC News. Este ponto está mais do claro, não é um problema que podemos varrer para debaixo do tapete e esperar que as novas gerações resolvam no futuro.

Segundo dados técnicos da International Renewable Energy Agency (Irena), organização intergovernamental para a “energia global da transformação”, instituição com 167 países-membros e com sede em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, “serão necessários US$ 131 trilhões de investimentos em tecnologias relacionadas à transição energética para colocar o mundo na rota de limitar o aquecimento a 1,5°C. Isto significa uma média anual de US$ 4,4 trilhões de recursos para o setor de energia entre 2021 e 2050. Em renováveis, os investimentos previstos para a descarbonização global devem ser de US$ 1 trilhão anuais durante os próximos 30 anos, ou mais que o triplo dos US$ 300 bilhões investidos em fontes limpas em 2020”.

IPCC e outros alertam sobre refugiados do clima e um planeta habitável

US$ 100 trilhões podem parecer muito dinheiro, mas não é nada comparado com os efeitos permanentes e as perdas relacionadas às mudanças climáticas. “Os ecossistemas saudáveis ​​são mais resilientes às mudanças climáticas e fornecem serviços essenciais à vida, como alimentos e água potável”, disse o copresidente do Grupo de Trabalho II do IPCC, Hans-Otto Pörtner. “Ao restaurar ecossistemas degradados e conservar de forma eficaz e equitativa 30 a 50 por cento da terra, água doce e habitats oceânicos da Terra, a sociedade pode se beneficiar da capacidade da natureza de absorver e armazenar carbono, e podemos acelerar o progresso em direção ao desenvolvimento sustentável, mas finanças e políticas adequadas são essenciais”.

Ou seja, o problema não é só dinheiro, mas também a implantação de políticas públicas e ações do setor privado e sociedade civil visando uma atuação urgente. “Dessa forma, diferentes interesses, valores e visões de mundo podem ser conciliados. Ao reunir o know-how científico e tecnológico, bem como o conhecimento indígena e local, as soluções serão mais eficazes. O fracasso em alcançar um desenvolvimento resiliente e sustentável ao clima resultará em um futuro abaixo do ideal para as pessoas e a natureza”, afirmou a professora Debra Roberts.

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Para isso, as cidades são focos de impactos, mas também uma parte crucial na busca por uma solução. “Juntos, a crescente urbanização e as mudanças climáticas criam riscos complexos, especialmente para aquelas cidades que já experimentam um crescimento urbano mal planejado, altos níveis de pobreza e desemprego e falta de serviços básicos”, disse Roberts. “Mas as cidades também oferecem oportunidades para a ação climática — edifícios verdes, suprimentos confiáveis ​​de água limpa e energia renovável e sistemas de transporte sustentáveis ​​que conectam áreas urbanas e rurais podem levar a uma sociedade mais inclusiva e justa.”

De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), a escassez de água é um dos fatores responsáveis pelos fluxos migratórios atuais. Conhecidos como “refugiados do clima” ou “refugiados climáticos”, esses grupos vulneráveis estão presentes em diversos países pelo mundo, entre eles países do norte da África, mas, também, na Espanha, Portugal e Brasil. “Essa vulnerabilidade tem cor, raça, gênero, etnia e geografia”, afirma Patrícia Pinho, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), uma das autoras brasileiras do relatório.

De acordo com o relatório Groundswell: Atuando na migração climática interna, do Banco Mundial, as mudanças climáticas podem gerar cerca de 216 milhões de refugiados climáticos em seis regiões do mundo, incluindo a América Latina, que serão forçadas a se mudarem de seus países até 2050 para fugirem de eventos climáticos adversos. A região mais afetada deverá ser a África Subsaarinana, concentrando quase 40% dos migrantes climáticos (86 milhões) das próximas três décadas. Na sequência aparece o Leste Asiático e Pacífico, com 22,6% (49 milhões) das futuras migrações do tipo. Publicado em setembro de 2021, o relatório já trazia 5 pontos de atenção para o Brasil:

  • Crescimento na duração das secas no Nordeste brasileiro;
  • Redução nas chuvas no Nordeste da América do Sul (Nordeste do Brasil) e Sudoeste da região (Chile e sul do Peru);
  • Crescimento da seca, da aridez e/ou das queimadas no sul da Amazônia brasileira e em parte do Centro-Oeste;
  • Número de dias com temperaturas máximas superiores a 35°C na Amazônia aumentarão em, no mínimo, 60 dias por ano até o final do século (podendo passar de 150 dias em um cenário mais extremo);
  • Mudança no regime das monções no sul da Amazônia brasileira e em parte do Centro-Oeste, com atraso nas chuvas torrenciais.

O relatório do IPCC também reforça estes alertas para o Brasil. O aumento do calor e umidade podem ultrapassar os limites de sobrevivência, fazendo com que tenhamos que nos mudar para outras regiões do país. Se as emissões continuarem a aumentar, as mortes por calor no Brasil aumentarão em 3% até 2050 e em 8% até 2090, de acordo com um estudo citado pelo relatório. Além disso, a produção de alimentos será afetada, o que levaria a impactos significativos no agronegócio e na economia (sem contar, é claro, na vida das pessoas).

O estresse causado pelo calor pode reduzir o crescimento animal e a produção de leite e ovos, além de aumentar a mortalidade de animais. Atualmente, o gado é raramente sujeito a estresse térmico extremo na maior parte do Brasil. Mas se as emissões continuarem a aumentar, tanto o gado quanto às aves de granja enfrentarão estresse térmico durante a maior parte do ano em grande parte do país. Os suínos, por sua vez, enfrentarão estresse térmico durante a maior parte em algumas partes do país. (Capítulo 5, p.50 – Climate Change 2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability – Food, fibre, and other ecosystem products | link)

“A evidência científica é inequívoca: a mudança climática é uma ameaça ao bem-estar humano e à saúde do planeta. Qualquer atraso adicional na ação global concertada perderá uma janela breve e de fechamento rápido para garantir um futuro habitável”, completa Hans-Otto Pörtner.

Imagem Destaque: Enchente em Salvador, 10 de maio de 2015 – Joa Souza/Shutterstock

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