Água virtual e consumo consciente: A crise hídrica está muito próxima

Água virtual e consumo consciente: A crise hídrica está muito próxima

“Uma grande crise hídrica se aproxima….” Eu bem que poderia começar este texto assim, mas não seria realista. O motivo é simples, a crise está entre nós há alguns anos. No entanto, eu não quero e não serei alarmista; pelo contrário, vou apenas pincelar o cenário atual que temos no Brasil quando o assunto é água. O objetivo não é trazer respostas definitivas, mas propor uma reflexão de como consumimos este recurso natural tão importante. Ainda, antes de trazer alguns dados, quero fazer um breve comentário sobre o porquê deste texto.

Nos últimos dias, tenho visto incontáveis matérias sobre “como economizar água” ou “brasileiro consome mais água do que a média mundial”, por exemplo. Este último não é mentira, afinal, segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades, cada brasileiro consome, em média, 154 litros todos os dias. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), é recomendado e considerado suficiente consumir 110 litros por dia. Mas esse poço é muito mais fundo.

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Segundo um artigo publicado no acervo da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico  (ANA), publicado em março de 2015, “a cada 100 litros de água tratada produzidos no Brasil, 72 vão para o agronegócio. Isso significa dizer que mais do que 70% do abastecimento é endereçado à agricultura e à pecuária, segundo dados recentes da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês). Bem atrás aparecem a indústria e a mineração com 12% do consumo, enquanto a população recebe só 4%.” Ou seja, qual o real impacto do consumo dos 44 litros diários acima do recomendado pela ONU?

Vale ressaltar que não adianta buscarmos um culpado e esperar que tudo se resolva, principalmente quando falamos de algo que impacta toda a sociedade. Também não adianta abrir mão da economia, só porque “não somos os culpados”. Indústria, agronegócio, residências, estamos todos dentro do mesmo bote salva-vidas. E todos precisam fazer a sua parte. O consumo consciente já deixou de ser um estilo de vida, para se tornar uma necessidade.

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Além do consumo, existe o desperdício. Não estou falando do banho de 15 minutos, mas da quantidade de água potável perdida no processo de distribuição. Segundo o estudo “Perdas de Água 2021: Desafios para disponibilidade hídrica e avanço da eficiência do saneamento básico”, no processo de abastecimento de água por meio de redes de distribuição, pode haver perdas dos recursos hídricos em decorrência de diversas causas, tais como: vazamentos, erros de medição e consumos não autorizados. Tais desperdícios trazem impactos negativos ao meio ambiente, à receita e aos custos de produção das empresas, onerando o sistema como um todo, e, em última instância, afetando a todos os usuários. Ainda segundo o estudo, em 2019, o Brasil desperdiçou quase 40% de toda água potável captada no país. Volume que daria para abastecer cerca de 63 milhões de pessoas (quase o dobro dos 35 milhões que atualmente não têm acesso ao recurso natural). 

Água Virtual: O poço sem fundo do consumo brasileiro

Como adiantei, não devemos, por exemplo, ficar “varrendo” a calçada com a mangueira e precisamos economizar, mas também precisamos entender para onde vão nossos recursos hídricos. Para que, como cidadãos, possamos termos argumentos para exigir de nossos representantes novas políticas públicas. E existe um conceito bem interessante, explorado no artigo “Água Virtual: O Brasil como grande exportador de recursos hídricos”, assinado por pesquisadores do Instituto de Economia Agrícola (IEA-SP) e Unicamp, que mostra como o Brasil exporta indiretamente água doce.

Apresentado no XVI Simpósio Brasileiro de Recursos Hídricos, em novembro de 2005, o estudo afirma: O Brasil é depositário de cerca de 19% do estoque mundial de água, caracterizando-se como uma região com relativa abundância de água superficial. Entretanto, devido a um histórico de uso inadequado dos recursos hídricos, associado a um aumento da demanda por diversos atores sociais e econômicos, algumas áreas do país enfrentam situações de escassez hídrica. Recentemente a valoração econômica da água tem sido amplamente discutida no cenário político brasileiro, principalmente em função da legislação específica que determina a cobrança pelo uso da água. Além da questão da cobrança pela água bruta existe outro aspecto importante, que é a incorporação da água nos produtos que circulam no mercado, especialmente através de commodities. Para analisar as implicações desse processo foi criada a concepção de “água virtual”, que avalia o quanto de água é incorporado em cada produto. Assim, contabilizando a água demandada na produção de soja, por exemplo, é possível avaliar a importação e exportação da água consubstanciada em soja.

O problema é que essa água virtual não é pouca. Segundo dados da Unesco, publicados pelo Yahoo Notícias e também presente no acervo da ANA, o Brasil exporta cerca de 112 trilhões de litros de água doce por ano por meio de carne bovina, soja, açúcar, café, entre outros produtos agrícolas. O volume é equivalente a 17 mil Lagoas Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Além disso, esse volume coloca o país como o quarto maior exportador de água virtual, atrás apenas de Estados Unidos (314 trilhões de litros/ano), China (143 trilhões de litros/ano) e Índia (125 trilhões de litros/ano).

A alocação dos recursos hídricos, além de ambiental, é uma questão econômica, porque quando a água é escassa é preciso destiná-la para onde haverá maiores benefícios para a sociedade. Mas sendo a água um bem público, o mercado não é o único determinante. A água deve ser usada para produzir alimentos para a população, para culturas ligadas a biocombustíveis ou para plantações de commodities para exportação? Isso é uma escolha política — aponta Arjen Hoekstra, criador do conceito de “pegada hídrica” e autor de diversos estudos sobre água virtual numa parceria entre Unesco e a Universidade de Twente.

Ainda no texto, a engenheira ambiental da Politécnica da USP, Mônica Porto, afirma: “O controle dos recursos naturais vai se tornar mais complexo no século XXI porque o uso se tornará mais competitivo. O Brasil ainda tem uma área de expansão agrícola, então o país precisa se planejar para as próximas décadas de modo que o crescimento da área irrigada seja sustentável. Não há nada de errado em o Brasil exportar água através das commodities se há essa disponibilidade hídrica. A forma como isso é gerenciado internamente é o que importa, através do controle do uso e do aumento de produtividade.”

Água virtual, decisões políticas, futuro dos recursos naturais; isso tudo precisa ser discutido (e urgentemente). Talvez a crise hídrica não seja evitável e, novamente, teremos que apelar para medidas emergenciais, mas talvez também seja o momento certo para trazermos do fundo do poço fantasmas antigos presentes nas políticas públicas e nos modos de consumo, sejam eles do agronegócio, da indústria ou em nossas residências. Afinal, se não fizermos isso, talvez quem fique no fundo do poço sejamos nós… e sem água.

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