O amanhã é ancestral: como o afrofuturismo redesenha o mundo

O amanhã é ancestral: como o afrofuturismo redesenha o mundo

  • • Como o afrofuturismo imagina futuros negros e reorganiza nossa relação com o tempo.
  • • O papel de artistas e autores brasileiros na construção de um afrofuturismo próprio.
  • • Referências essenciais do Brasil e do mundo para começar (ou aprofundar) no tema.

No Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, a reflexão histórica ganha força. Lembramos de Zumbi dos Palmares, a resistência negra, a escravidão e o racismo estrutural, pontos fundamentais para compreender o país.

Mas existe um outro caminho, igualmente necessário, que desloca o olhar para frente: imaginar o futuro. Esse é o ponto de partida do afrofuturismo, um movimento que mistura ficção científica, cosmologias africanas, estética pop e experiências da diáspora para projetar futuros onde pessoas negras ocupam o centro das narrativas.

O afrofuturismo não se limita a um gênero artístico. É um exercício de imaginação radical que enxerga o amanhã como um território moldado por referências que costumaram ficar à margem: saberes ancestrais, espiritualidade, cultura afro-brasileira, identidades periféricas e debates sobre tecnologia.

A pergunta que move esse movimento é simples: que futuros surgem quando a imaginação negra conduz a narrativa?

Essa perspectiva rompe a lógica que coloca pessoas negras apenas como passado de luta ou presente de sobrevivência. Histórias com ciborgues capoeiristas, cidades inspiradas em reinos africanos, tecnologias com ética comunitária e viagens no tempo guiadas pela ancestralidade não são apenas criatividade, mas disputas simbólicas sobre quem participa do futuro.

Para começar pelo Brasil

A ficção especulativa negra no Brasil tem se consolidado como um campo cada vez mais robusto, e Lu Ain-Zaila ocupa posição decisiva nesse processo. Seu livro “(IN)verdades”, frequentemente citado como uma das obras pioneiras do afrofuturismo brasileiro, articula física quântica, espiritualidade de matriz africana e crítica social para construir universos que refletem, com ousadia, as tensões do país. A autora amplia o repertório do gênero no Brasil ao criar narrativas que tratam o futuro como extensão de nossas contradições e potências.

Outro nome que figura entre as vozes mais inventivas do afrofuturismo brasileiro é Fábio Kabral. Em obras como “O Caçador Cibernético da Rua 13” e “A Cientista Guerreira do Facão Furioso”, ele ergue sociedades futuristas guiadas por mitologias africanas, aproximando alta tecnologia de cosmologias ancestrais sem submeter uma à outra.

Ale Santos acrescenta uma nova dimensão ao seu repertório ao entrelaçar memória, fantasia e referências culturais contemporâneas. Em “O Último Ancestral” e “A Malta Indomável”, ele recria mitologias africanas e afro-brasileiras com ritmo atual, aproximando leitores que buscam uma introdução envolvente a esse universo.

No cinema, “Medida Provisória” se destaca ao imaginar um Brasil distópico que obriga pessoas negras a “retornarem” para a África. Mesmo não sendo afrofuturismo puro, o filme trabalha elementos especulativos que ajudam a pensar futuro, identidade e pertencimento.

Produções independentes, videoclipes e performances também vêm explorando imaginários futuristas, seja por meio de visualidade inspirada em culturas africanas, seja pelo uso de tecnologia e narrativa especulativa. Artistas como Xênia França, Larissa Luz, MC Tha, Jup do Bairro e coletivos como Afrobapho ajudam a expandir esse repertório com trabalhos que misturam ancestralidade, estética contemporânea e experimentação audiovisual.

Olhar para fora também ajuda a entender o movimento

No cenário internacional, “Pantera Negra” popularizou o afrofuturismo ao apresentar Wakanda como uma nação africana tecnológica, complexa e jamais colonizada. A união entre tradição e inovação transformou o filme em referência global.

“The Last Angel of History”, de John Akomfrah, é um documentário-ensaio que conecta ficção científica, música negra e história da diáspora, criando uma reflexão poética sobre como tecnologia e negritude se entrelaçam. Em outra direção, a animação “Iwájú”, fruto de uma colaboração entre a Disney e o estúdio africano Kugali Media, imagina uma Lagos futurista e se aproxima do que Nnedi Okorafor define como african-futurism, um olhar mais centrado nas culturas e realidades africanas contemporâneas.

Reconhecida como uma das vozes mais importantes do afrofuturismo, Octavia E. Butler criou mundos onde espiritualidade, transformação e conflitos de poder se entrelaçam. Obras como “Kindred” e “Xenogênese” revelam sua capacidade de reinventar a ficção científica a partir de perspectivas negras.

O afrofuturismo, em sua essência, reorganiza nossas formas de pensar o tempo e amplia quem pode ocupar o futuro. Imaginar futuros negros é um gesto de afirmação e continuidade, uma maneira de reivindicar presença onde antes havia ausência. Ao olhar para o amanhã a partir de outras histórias, abrimos espaço para mundos mais amplos e mais conscientes do que desejamos construir.

Compartilhe esse artigo: