Categories Inova+Posted on 15/08/202514/08/2025Ainda seremos humanos se robôs criarem nossos filhos? O que você vai descobrir a seguir: • Como a história evolutiva da humanidade dependeu de redes de cuidadores para o desenvolvimento da empatia. • Casos reais que mostram riscos e benefícios de robôs no cuidado infantil. • Por que a substituição de cuidadores humanos pode afetar a essência do que nos torna humanos. Nos primeiros meses e anos de vida, o desenvolvimento de um bebê vai muito além de nutrição e cuidados básicos. O toque, o contato visual, o tom de voz e a troca de expressões com diferentes pessoas não são apenas gestos de carinho. São ingredientes que moldam o cérebro e constroem habilidades sociais para toda a vida. Quem afirma isso com propriedade é Sarah Blaffer Hrdy, antropóloga e primatóloga norte-americana, professora emérita da Universidade da Califórnia em Davis, e integrante de instituições de prestígio como a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e a Academia Americana de Artes e Ciências. Reconhecida por transformar o entendimento sobre evolução humana, Hrdy é autora de obras de referência como Mãe Natureza (“Mother Nature”, 1999, edição em português publicada pela Editora Campus em 2001) e “Mothers and Others” (2009, disponível apenas em inglês). Em seus livros, defende que nossa espécie só sobreviveu graças à criação cooperativa; um modelo em que múltiplos cuidadores humanos participam do desenvolvimento infantil. Ao estudar a evolução, a pesquisadora destacou a importância da alomaternidade: quando cuidadores que não são os pais biológicos, como avós, tios, irmãos mais velhos e vizinhos, assumem papéis ativos na criação. Há milhares de anos, essa rede diversificada permitia que mães se ausentassem para buscar alimento ou realizar tarefas essenciais à sobrevivência, sem que os bebês ficassem sem atenção. Com o tempo, esse “buscar alimento” ganhou outras formas. Hoje, pode significar trabalhar fora, estudar, cuidar da casa, administrar compromissos e lidar com múltiplas demandas ao mesmo tempo. E, mesmo em cenários tão diferentes dos ancestrais, a presença de outros cuidadores continua garantindo que a criança esteja cercada de estímulos, segurança e afeto. Essa estrutura ainda é comum em várias culturas e se traduz no provérbio africano que atravessou fronteiras: “É preciso uma vila para criar uma criança.” A “vila” é social e afetiva, formada por múltiplas pessoas que contribuem com cuidados, experiências e modelos de comportamento. Foi nesse ecossistema humano que desenvolvemos empatia, cooperação e a capacidade de compreender a perspectiva do outro. Mas essa “vila” está encolhendo. Famílias urbanas vivem longe de parentes, o apoio comunitário se enfraqueceu e creches de qualidade nem sempre estão ao alcance. Nesse cenário, soluções tecnológicas ganham espaço: câmeras inteligentes, assistentes domésticos com IA e robôs cuidadores. Essa mudança também se conecta ao que especialistas chamam de “economia do cuidado”: o conjunto de atividades essenciais para o bem-estar das pessoas, geralmente realizadas por familiares, cuidadores profissionais e trabalhadores de creches. Quando parte dessas funções passa a ser desempenhada por máquinas, surge um debate sobre não apenas a qualidade do cuidado, mas também o valor que atribuímos a ele como sociedade. Em países como o Japão, que enfrenta envelhecimento populacional e escassez de mão de obra, essas máquinas já são usadas para monitorar, alimentar e entreter crianças em ambientes domésticos e escolares. Convenientes? Sim. Seguras? Em boa parte dos casos, sim. Mas surge a pergunta essencial: podem substituir a riqueza emocional e social proporcionada por humanos? Casos extremos nos lembram do que está em jogo. Embora haja muitos outros registros semelhantes, o mais conhecido é o de Victor de Aveyron (França, século XVIII), resgatado de uma floresta após anos de isolamento. Ele apresentava sérias dificuldades em desenvolver linguagem, empatia e competências sociais, e, apesar dos esforços de médicos e educadores da época, nunca adquiriu plenamente as habilidades típicas de quem cresce cercado por interações humanas ricas. Mesmo que robôs consigam atender necessidades físicas, ainda não há evidências de que possam oferecer a complexidade de interações necessária para o pleno desenvolvimento humano. O cuidado como fundamento da humanidade Para Sarah Blaffer Hrdy, a questão não é apenas se robôs podem criar crianças, mas o que se perde quando deixamos máquinas ocupar o lugar de relações humanas ricas. Nossa história evolutiva foi construída na interdependência, na troca e no reconhecimento mútuo. É nesse espaço que floresce a empatia e se formam os vínculos que sustentam a vida em comunidade. A partir das reflexões da antropóloga e primatóloga, podemos destacar alguns princípios para guiar o uso da tecnologia no cuidado infantil sem perder o que nos torna humanos: • Tecnologia como apoio, não substituição: robôs podem aliviar tarefas, mas não devem eliminar o contato humano. • Interações diversificadas: o desenvolvimento saudável exige diferentes cuidadores humanos, com repertórios emocionais variados. • Preservação da empatia: a capacidade de compreender e se importar com o outro é fruto de experiências sociais complexas e coletivas. Se o que nos torna humanos é a nossa habilidade de nos conectar profundamente, talvez o maior risco não seja que robôs cuidem de nossas crianças, mas que deixemos de cultivar a “vila” que moldou nossa própria humanidade. Para entender melhor as reflexões de Sarah Blaffer Hrdy sobre o futuro do cuidado infantil e o papel da tecnologia, assista no player abaixo à palestra completa “Are we still human if robots help raise our babies?”, disponível com legendas em português de Portugal. Créditos: Imagem Destaque – Ma Di/Shutterstock Compartilhe esse artigo: