Escravidão moderna: Por que as empresas devem conhecer seus fornecedores

Escravidão moderna: Por que as empresas devem conhecer seus fornecedores

Conhecer o seu fornecedor é fundamental para o sucesso de qualquer negócio. No marketing, aprendemos sobre a importância dos stakeholders, um conjunto muito maior que engloba “todos os grupos de pessoas ou organizações que podem ter algum tipo de interesse pelas ações de uma determinada empresa”. Isso pode parecer básico para quem gerencia uma empresa ou uma marca, mas muitos parecem ter esquecido essas regras básicas, especialmente quando o assunto é trabalho escravo.

Nos últimos meses, empresas dos mais diversos setores foram denunciadas por utilizarem mão de obra em condições análogas à escravidão. Em todas as situações, a resposta da marca responsável foi “eles são trabalhadores de uma empresa terceirizada/fornecedor”. A empresa alega nunca ter visto ou saber sobre essas condições. Seja para produzir suco de uva, montar o palco de um festival de música ou produzir peças de carro, as empresas sempre se eximem da responsabilidade. É urgente que as empresas conheçam seus fornecedores e assumam a responsabilidade por suas ações e de seus fornecedores.

No início dos anos 2000, a Foxconn, principal parceira na fabricação de produtos Apple, foi acusada de utilizar trabalho escravo na China. Desde então, a marca de Cupertino vem adotando diretrizes para ajudar a erradicar a escravidão moderna. Em 2018, a Apple recebeu o prêmio “Acabe com a Escravidão” da Thomson Reuters Foundation por suas iniciativas para identificar, investigar e erradicar o trabalho forçado de suas cadeias de abastecimento. Apesar do reconhecimento e das diretrizes atuais para fiscalizar fornecedores, a Apple ainda sofre as consequências dos anos em que fechou os olhos para seu principal fornecedor.

Denuncie aqui condições análogas à escravidão de forma anônima no Sistema Ipê

A Apple é um bom exemplo de empresa que possui iniciativas neste campo. De acordo com o Relatório de Acompanhamento de 2022 (disponível aqui em português), a empresa anunciou um Fundo de Desenvolvimento de Funcionários de Fornecedores de US$ 50 milhões, para “dar voz às trabalhadoras e trabalhadores e ampliar o acesso a oportunidades de aprendizado e desenvolvimento de habilidades para mais pessoas” em sua cadeia de fornecimento e comunidades vizinhas. Além disso, desde 2020, 9% dos candidatos a fornecedores avaliados foram impedidos de ingressar na cadeia de fornecimento por incapacidade ou relutância em seguir o Código de Conduta dos Fornecedores da Apple e os Padrões de Responsabilidade dos Fornecedores da Apple (veja mais aqui).

Condições análogas à escravidão: No Brasil, mais de 2,5 mil pessoas em 2022

Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, publicados pelo portal G1, ao todo, 2.575 trabalhadores que estavam sendo explorados foram resgatados em 462 fiscalizações pelo país em 2022 — um aumento de 31% no número de vítimas em relação a 2021 e de 127% na comparação com 2019, antes da pandemia. No entanto, o cenário em 2023 é ainda mais assustador. O número de vítimas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no Brasil aumentou 124% nos primeiros meses deste ano, em comparação com o mesmo período de 2022. Até o dia 20 de março de 2023, foram resgatados 918 trabalhadores nessas condições.

Destaque na imprensa e nas redes sociais, no final de fevereiro, mais de 200 trabalhadores foram resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves, na Serra do Rio Grande do Sul. Eles foram contratados por uma empresa que oferecia mão de obra para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi, Salton e produtores rurais da região, e o caso repercutiu em todo o país. No entanto, o estado não lidera a lista de casos (veja o gráfico).

Voltando ao ponto que destaquei no início do texto, as empresas precisam conhecer seus fornecedores, a fim de evitar desgastes em suas marcas. Um exemplo claro é o Lollapalooza. Um dos principais festivais de música do país, é a quarta vez que sofre denúncias de irregularidades envolvendo prestadores de serviços. Veja bem, não é uma vez, nem duas. São quatro vezes seguidas! Entenda os casos: 

  • 2018: Pessoas em situação de rua denunciaram terem sido contratadas irregularmente para erguer palcos de eventos. Ganhando R$ 50 por dia e sem equipamentos de proteção, as denúncias foram divulgadas no Facebook pelo Padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua e referência na luta pelos direitos humanos. Leia mais sobre o assunto em matéria publicada pelo The Intercept Brasil aqui;
  • 2019: Repetindo a denúncia do ano anterior, trabalhadores relataram à Folha de São Paulo que receberam R$ 50 por dia, por jornadas de 12 horas, para ajudar no carregamento de equipamentos na montagem do festival Lollapalooza. Leia mais sobre o assunto em matérias publicadas pela Folha de São Paulo aqui e aqui;
  • 2022: Novamente denunciado pelo Padre Julio Lancellotti, o Lollapalooza foi acusado de contratar pessoas em situação de rua para trabalhar na montagem do evento. Leia mais sobre o assunto em matéria publicada pelo Yahoo! Notícias aqui;
  • 2023: Uma fiscalização realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nas instalações do Lollapalooza, encontraram trabalhadores em condições análogas à escravidão, dormindo entre fardos de bebidas, sobre pallets e colchonetes. Leia mais sobre o assunto em matéria publicada pelo Jornal Nacional aqui e pela Agência Brasil aqui.

Nos três primeiros casos (2018, 2019 e 2022), não encontrei nenhum comunicado oficial do Lollapalooza ou as declarações da T4F (Time For Fun), empresa responsável pelo evento, eram limitadas a declarações genéricas. No entanto, neste ano, segundo o portal G1, a empresa emitiu um comunicado oficial que reproduzimos abaixo na íntegra:

“Para realizar um evento do tamanho do Lollapalooza Brasil, que ocupa 600 mil metros quadrados no Autódromo de Interlagos e tem a estimativa de receber um público de 100 mil pessoas por dia, o evento conta com equipes que atuam em diferentes frentes de trabalho, em departamentos que variam da comunicação a operação de alimentos e bebidas, da montagem dos palcos a limpeza do espaço e a segurança. São mais de 9 mil pessoas que trabalham diretamente no local do evento e são contratadas mais de 170 empresas prestadoras de serviços.

A T4F, responsável pela organização do Lollapalooza Brasil, tem como prioridade que todas as pessoas envolvidas no evento tenham as devidas condições de trabalho garantidas e, portanto, exige que todas as empresas prestadoras de serviço façam o mesmo. Nesta semana, durante uma fiscalização do Ministério do Trabalho no Autódromo de Interlagos, foram identificados 5 profissionais da Yellow Stripe (empresa terceirizada responsável pela operação dos bares do Lollapalooza Brasil), que, na visão dos auditores, se enquadrariam em trabalho análogo à escravidão.

Os mesmos trabalharam durante 5 dias dentro do Autódromo de Interlagos e, segundo apurado pelos auditores, dormiram no local de trabalho, algo que é terminantemente proibido pela T4F. Diante desta constatação, a T4F encerrou imediatamente a relação jurídica estabelecida com a Yellow Stripe e se certificou que todos os direitos dos 5 trabalhadores envolvidos fossem garantidos de acordo com as diretrizes dos auditores do Ministério do Trabalho.

A T4F considera este um fato isolado, o repudia veementemente e seguirá com uma postura forte diante de qualquer descumprimento de regras pelas empresas terceirizadas.”

Longe de entrar no mérito de julgar os casos, quero falar sobre o comunicado sob a ótica do marketing e da comunicação. É importante ressaltar que a empresa tem conhecimento das denúncias dos anos anteriores e é uma das principais do mercado de entretenimento, sendo responsável por diversos eventos de grande porte. Com isso, gostaria de comentar parágrafo por parágrafo:

§ 1º:São mais de 9 mil pessoas que trabalham diretamente no local do evento e são contratadas mais de 170 empresas prestadoras de serviços” — Sabemos que um evento como o Lollapalooza envolve diversos stakeholders e a empresa responsável sabe melhor do que você, que está lendo, e eu, que é necessário fiscalizar suas atividades. No entanto, isso não é desculpa para não fiscalizar suas atividades. Além disso, a T4F é uma empresa com ações na B3 e possui um “Comitê de Pessoas e ESG”, criado em maio de 2022. Portanto, não faz sentido ignorar a avaliação dos fornecedores, já que existem diretrizes estabelecidas, embora eu particularmente ache que as diretrizes são genéricas e com muito foco na gestão de executivos, deixando a gestão social e/ou ambiental em segundo plano;

§ 2º: que, na visão dos auditores, se enquadrariam em trabalho análogo à escravidão” — As fiscalizações do Ministério do Trabalho são realizadas para garantir o cumprimento das leis trabalhistas. Quando o comunicado dá a entender que o erro está apenas “na visão dos auditores”, parece que a empresa tenta se eximir de qualquer culpa e não reconhece a gravidade da situação dos trabalhadores encontrados pela fiscalização;

§ 3º:dormiram no local de trabalho, algo que é terminantemente proibido pela T4F” — Apesar de afirmar que “se certificou que todos os direitos dos 5 trabalhadores fossem garantidos”, segundo o comunicado, parece que a empresa responsável só encerrou o contrato porque os trabalhadores dormiram no local de trabalho, e não por todo o cenário e condições pontuadas pela fiscalização; 

§4º:considera este um fato isolado, o repudia veementemente” — Por fim, parece que a empresa ignora os fatos ocorridos nos anos anteriores, chamando de “fato isolado” e repudiando o caso, mas não apresenta nenhuma medida ou ação a ser tomada para evitar futuras ocorrências, mesmo que seja uma ação em relação a empresas terceirizadas.

Culpada ou não, cabe ao Ministério Público e à Justiça avaliarem os casos, mas volto a reafirmar, se há um comitê focado em ESG, as ações — tanto para evitar, quanto para se pronunciar — poderiam ser bem diferentes no caso do Lollapalooza. Em um mundo onde o impacto social ganha destaque em pautas de investidores, não há espaço para empresas (principalmente aquelas com capital aberto) se isentarem das responsabilidades de conhecerem profundamente seus fornecedores.

China, Brasil e… EUA: O caso das crianças imigrantes em trabalhos brutais

Assim como o comunicado do Lollapalooza, gostaria de acreditar que casos análogos à escravidão são fatos isolados; caracteristicos de países ou atividades onde a mão de obra barata abre brechas para ações obscuras, mas infelizmente não é o que acontece. Publicada em fevereiro de 2023, a matéria do The New York Times intitulada “Alone and Exploited, Migrant Children Work Brutal Jobs Across the U.S.” (“Sozinhos e explorados, crianças imigrantes trabalham em empregos brutais em toda os Estados Unidos“, em tradução livre) mostra como fornecedores de grandes marcas exploram o trabalho infantil no país com uma das maiores economias do mundo.

Movido pelo desespero econômico, jovens são enviados para os EUA (detalhe: sem os pais ou qualquer responsável, cooptados por “chacais” ou atravessadores que fazem o processo de imigração parecer legal) em busca de uma nova vida de maravilhas e abundâncias. Chegando ao ponto final, são direcionados para trabalhos que extrapolam a carga horária semanal, em ambientes insalubres e atividades brutais, como fábricas, fazendas e construção civil, em algo muito semelhante a uma escravidão moderna.

Leia aqui mais sobre o ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico

De acordo com a matéria, o número de menores desacompanhados que entraram nos EUA subiu para 130.000 no ano passado, três vezes mais do que há cinco anos. É importante ressaltar que essas crianças não entraram furtivamente no país. “O governo federal sabe que elas estão nos EUA e o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, sigla em inglês) é responsável por garantir que os patrocinadores (pessoas responsáveis por receberem os jovens) as apoiem e protejam do tráfico e da exploração”, afirma o jornal.

Longe de casa, muitas dessas crianças estão sob intensa pressão para ganhar dinheiro, e enviam dinheiro de volta para suas famílias, embora muitas vezes estejam em dívida com seus patrocinadores por taxas de contrabando, aluguel e despesas de subsistência. Apesar do HHS verificar todos os menores, ligando para eles um mês depois de começarem a morar com seus patrocinadores, dados obtidos pelo NY Times mostraram que, nos últimos dois anos, a agência não conseguiu entrar em contato com mais de 85.000 crianças, além de ter perdido contato imediato com um terço das crianças imigrantes.

Durante a produção da matéria, o NY Times realizou entrevistas com mais de 100 crianças trabalhadoras imigrantes em 20 estados diferentes, bem como com professores do ensino fundamental e médio de programas de aprendizado de inglês. Os educadores relataram que é cada vez mais comum ver alunos saindo correndo da escola para encarar longos turnos de trabalho.

Além disso, o artigo do NY Times aponta que o trabalho infantil migrante beneficia tanto operações clandestinas quanto corporações globais. Em Los Angeles, as crianças costuram etiquetas “Made in America” nas camisetas da J.Crew. Elas assam pães vendidos no Walmart e Target, processam o leite utilizado no sorvete da Ben & Jerry’s e ajudam a desossar frango vendido no Whole Foods. No outono, estudantes do ensino médio produzem meias da Fruit of the Loom no Alabama e, em Michigan, outras crianças produzem peças automotivas utilizadas pela Ford e General Motors (GM).

Vale lembrar que, assim como destaquei no caso do Lollapalooza, a maioria das empresas mencionadas pelo NY Times têm capital aberto e têm (ou devem ter) políticas ESG que monitoram seus fornecedores. Ao contrário do caso da Apple, nesses casos a situação ocorre “bem debaixo do nariz” das empresas, em solo americano. Não é possível argumentar que a fábrica está em algum lugar remoto da China ou de outro país distante. Novamente, é urgente que as empresas passem a entender e conhecer profundamente quem são seus fornecedores.

Se ainda não ficou claro e muitas só entendem quando pesa no bolso, é fundamental que as empresas conheçam e fiscalizem seus fornecedores, não apenas questões financeiras e de reputação, mas também por questões éticas e morais. Empresas que se envolvem em escândalos de trabalho infantil ou análogo à escravidão podem enfrentar sanções e boicotes. Além disso, com o crescente interesse dos investidores em questões ESG, as empresas precisam estar atentas à gestão de suas cadeias de suprimentos para garantir que estão em conformidade com as suas diretrizes, que devem levar em conta o impacto social onde estão inseridas.

Caso as empresas citadas queiram se pronunciar, o InovaSocial deixa o espaço aberto para contato via o e-mail contato@inovasocial.com.br

Imagem Destaque: Paul Craft/Shutterstock

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