Quem conta essa história? Gênero, raça e liderança no audiovisual brasileiro

Quem conta essa história? Gênero, raça e liderança no audiovisual brasileiro
O que você vai descobrir a seguir:
  • • Como dados inéditos apresentados pela ONU Mulheres revelam um setor audiovisual ainda desigual e predominantemente branco e masculino.
  • • A importância de iniciativas como a Aliança por Mais Mulheres no Audiovisual para transformar a indústria com foco em diversidade e inclusão.
  • • As desigualdades salariais e de reconhecimento profissional que ainda marcam a trajetória de mulheres e pessoas negras no audiovisual.

Durante o Festival de Cannes 2025, que nesta edição homenageia o Brasil como país de honra no Marché du Film – o maior mercado global de negócios do cinema – a ONU Mulheres Brasil levou ao centro da conversa uma pauta que costuma ficar nos bastidores: quem realmente toma as decisões no audiovisual. A apresentação fez parte da Aliança por Mais Mulheres no Audiovisual, criada em 2022 com o Instituto +Mulheres para promover mudanças estruturais no setor, e que agora ganha o reforço da ApexBrasil, por meio do programa Mulheres e Negócios Internacionais.

A proposta é transformar o setor de dentro para fora: ampliar a presença feminina em cargos de liderança, garantir condições dignas de trabalho e produzir dados capazes de embasar políticas de diversidade. A Aliança se ancora nas diretrizes da Agenda 2030 e na celebração dos 30 anos da Plataforma de Ação de Pequim, usando o marcador de gênero como ponto de partida para impulsionar outros grupos da diversidade – pessoas negras, LGBTQIAPN+, com deficiência, de diferentes gerações e regiões do país.

Os dados apresentados em Cannes sintetizam os achados da “Pesquisa de Obras”, conduzida com a startup Diversitera. Foram analisadas 88 produções feitas entre 2018 e 2022 por quatro grandes produtoras brasileiras, com foco em cargos estratégicos como roteiro, direção e produção. Os painéis “Brazil and France: Women in Leadership Positions” e “Voices of the Majority in Film: Brazil’s 54% who is Black Can’t Wait” mostraram um retrato já conhecido, mas que ainda precisa ser enfrentado: lideranças brancas, heterossexuais, sem deficiência, concentradas no Sudeste e com média de 47 anos.

O retrato de um setor que precisa mudar

  • Perfil das lideranças: homens brancos, heterossexuais, sem deficiência, com média de 47 anos e concentrados no Sudeste ainda dominam os bastidores.
  • Desigualdade de renda: enquanto homens recebem em média R$ 24.368,42, mulheres ficam com 76% desse valor (R$ 18.652,54). Mulheres negras ganham ainda menos: R$ 13.187,50.
  • Satisfação profissional: apenas 39% das mulheres e 45% das pessoas negras estão satisfeitas com os créditos recebidos nas obras. Mulheres também relataram maior insatisfação com o equilíbrio entre vida e trabalho.

Apesar de 48% das funções técnicas serem ocupadas por mulheres, isso não se traduz, necessariamente, em ambientes inclusivos ou oportunidades equitativas. As mulheres são maioria entre os que têm graduação e pós, e também entre aqueles que atuam como pessoas jurídicas com renda inferior a R$ 360 mil; o que revela uma segmentação preocupante: mais qualificação, menos retorno.

Caminhos para um novo roteiro

Segundo Tamiris Hilário, consultora técnica da ONU Mulheres Brasil para a Indústria Audiovisual, a pesquisa representa apenas o início de uma caminhada mais ampla. Ela explica que “esse é apenas um ponto de partida, uma amostra, que nos serviu para criar metodologia e gerar insights”. E aponta o próximo passo: “Agora desejamos observar pequenas e médias produtoras de todo o território e contrastar os achados. Estamos buscando parceiros para viabilizar isto”.

Já Daniele Bulmini Godoy, gerente de projetos da ONU Mulheres para o setor privado, chama atenção para um fenômeno comum no setor: a ideia de que a maior presença feminina em conteúdos seria suficiente para se falar em igualdade. Ela reconhece que “tivemos algumas mobilizações nos últimos anos que geraram uma falsa percepção de que a igualdade de gênero já foi alcançada em razão do aumento da presença de mulheres em conteúdos e iniciativas voltadas ao público feminino”. No entanto, adverte que esse movimento ainda não se reflete nos bastidores: “São movimentos absolutamente relevantes, mas ainda precisamos observar lacunas significativas em relação a quem desenvolve as narrativas, diversidade em cargos estratégicos, ambientes inclusivos e condições dignas de trabalho”.

Para Ana Carolina Querino, cientista política e representante interina da ONU Mulheres no Brasil, os dados reforçam que mulheres e pessoas negras continuam enfrentando barreiras sistêmicas dentro do setor. “Especificamente falando do setor audiovisual, estamos diante de uma grande oportunidade”, afirma. E conclui: “Há muito a ser feito. Podemos realizar um trabalho de transformação setorial pioneiro, com potencial de replicação local e global”.

O relatório completo apresentado em Cannes será divulgado em breve. E esperamos que não fique só no tapete vermelho, mas puxe conversa de bastidor, onde as mudanças começam de verdade.


Créditos: Imagem Destaque – Giovanni Love/Shutterstock

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