Renda básica universal: Uma discussão que impacta o nosso futuro

Renda básica universal: Uma discussão que impacta o nosso futuro

A Covid-19 não é apenas uma crise de saúde, mas também um grande desastre econômico para muitas pessoas em todo o mundo. O Brasil está longe de ser o único país que anseia por reabrir o comércio, tentando amenizar os efeitos da pandemia. E não é só eu que estou afirmando isso, mas a ONU e tantos outros especialistas já disseram o mesmo. Segundo a organização, “uma alta funcionária do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) está pedindo aos países que ofereçam aos cidadãos uma renda básica universal, para ajudar milhões de pessoas que perderam o emprego devido a medidas para conter o vírus, combinadas com níveis crescentes de desigualdade. Em entrevista ao UN News, Kanni Wignaraja, que dirige o escritório do PNUD na Ásia-Pacífico, explicou por que a ideia da renda básica universal (na qual os governos dão uma quantia mínima em dinheiro a todos os cidadãos, com base em seu status de trabalho ou renda) está começando a ganhar força.”

“A maioria dos países da Ásia-Pacífico carrega uma dívida interna alta ou uma dívida externa alta, e não queremos ver uma carga crescente da dívida, porque isso só causará mais problemas para as gerações futuras. Mas, na maioria dos países desta região, a taxa de imposto sobre o PIB é muito baixa e a maior parte do dinheiro público vem de impostos regressivos e indiretos. Em outras palavras, são principalmente os pobres que estão sendo tributados desproporcionalmente, e isso precisa mudar.”


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Mas antes de seguirmos para a discussão da renda básica universal pós-pandemia, vamos entender o que era esta discussão antes da Covid-19. Em janeiro de 2017, a Finlândia iniciou o projeto-piloto da renda básica universal. No ano seguinte, o jornalista e escritor Tuomas Muraja já era entrevistado por inúmeros veículos de comunicação do mundo todo. Ele era um dos primeiros participantes deste projeto que, selecionados aleatoriamente pelo governo finlandês, receberam 560 euros por mês durante 2 anos. No total, foram 2 mil pessoas desempregadas, em idade entre 25 e 58 anos, que receberam o valor.

No início de 2019, o governo finlandês apresentou as primeiras impressões sobre o projeto-piloto; algo que Muraja já vinha falando em suas diversas entrevistas: todos que receberam o auxílio continuaram buscando emprego e trabalhando. Primeiro, porque € 560 (algo em torno de R$ 3.400, na cotação atual) não é o suficiente para viver na Finlândia e, segundo, porque — nas palavras de Muraja — “ter a segurança de uma renda mínima não torna ninguém mais vagabundo”. De acordo com o jornalista, o grande impacto em relação ao benefício foi “menos estresse e mais liberdade”. Isso porquê a Finlândia já possui diversos auxílios, mas Muraja explica que a liberdade de não ter que ficar preenchendo longos formulários para solicitar ajudas e ter a tranquilidade de que, no fim do mês, teria um cheque na mão, mesmo que numa quantia baixa, eliminava parte do estresse. Liberdade e menos estresse, fatores que melhoram a qualidade de vida, mas também impactam positivamente na saúde e na felicidade. Não à toa, a Finlândia aparece em primeiro lugar no Relatório Mundial Sobre Felicidade 2020.

Em entrevista publicada no Deutsche Welle, e reproduzida pelo UOL Economia, Muraja lembra que podia se concentrar no trabalho e ser mais criativo, o que lhe tornava mais produtivo em sua área. Nos dois anos de experimento, ele publicou dois livros, escreveu inúmeros artigos e concorreu a 80 vagas. Outros com quem ele conversou para o seu livro (Basic Income Guinea Pig, sem versão em português) também tiveram experiências positivas. Uma senhora montou seu próprio café, sabendo que tinha renda garantida. Um universitário recém graduado aproveitou para fazer estágios de baixa remuneração para ganhar experiência sem ter que se preocupar.

Apesar dos relatórios iniciais classificarem a iniciativa como um fracasso, pois gerou efeitos mínimos sobre as perspectivas de emprego, Minne Ylikanno — pesquisadora sênior do Instituto de Seguro Social da Finlândia (Kela) — que realizou um estudo sobre o programa, rejeita esta visão. “Eu diria que a experiência foi um sucesso”, diz ela. “Nenhum outro país implementou uma renda básica nacional baseada em uma lei. É justo dizer que não podemos ver um efeito muito grande no emprego, isso é verdade. Mas o comentário de que é um fracasso, eu diria que não é justo”.

De acordo com a reportagem, publicada no UOL Economia, “os resultados [que geraram a perspectiva de “fracasso”] foram baseados na comparação dos 2 mil participantes desempregados que tinham recebido os 560 euros por mês de janeiro de 2017 a dezembro de 2018, com um grupo de controle de 173 mil que não o fizeram. Houve apenas uma pequena diferença estatística entre o grupo de estudo e o grupo de controle no número de pessoas que encontraram trabalho após dois anos. Onde houve uma diferença estatística significativa, no entanto, foi em como cada um dos dois grupos se sentia feliz. As pessoas que recebiam 560 euros por mês relataram níveis muito mais baixos de insegurança e estresse.”

Antes estava tudo bem, mas agora a renda básica universal pode ser o futuro

Ainda segundo a reportagem, Bernhard Neumärker, diretor do Departamento de Política Econômica da Universidade de Freiburg, na Alemanha, afirma que “quando se trata de renda básica universal, a ciência está muito atrás da sociedade”, diz ele. “Os políticos se sentem inseguros sobre isso, por isso encontram argumentos fáceis, como dizer que todos ficarão preguiçosos ou que não há como financiá-la.” Ele completa, “a Alemanha e outros países da União Europeia tinham a opinião de que tudo estava indo bem sem renda básica. Então por que ter? Agora a crise mostrou que as coisas estão se tornando sérias para o tradicional e, na minha opinião, ultrapassado Estado Social. Eu diria que se organizarmos bem a renda básica universal, diante da digitalização, de novos acontecimentos e crises, este é um dos poucos modelos promissores e sustentáveis para uma economia de mercado moderna”.

Neumärker vem na linha do que já falamos em outros momentos no InovaSocial. Seja com o “fim do capitalismo”, assinalado pelo ex-executivo do HSBC em sua “Carta Aberta à Humanidade”, ou com a crescente inserção de novas tecnologias, entre elas a inteligência artificial, e a necessidade de um novo ciclo do capitalismo, impulsionados pela pandemia, mostram que a renda básica universal não é uma utopia. Muito pelo contrário, no texto “O futuro do trabalho e o surgimento da Classe dos Inúteis”, o futurista e historiador Yuval Harari já afirmava que um esquema de renda básica universal é algo factível para o futuro que se aproxima (lembrando que o texto foi publicado em novembro de 2018, aqui no InovaSocial).

Pós-pandemia, renda básica é vacina contra miséria

Em um texto publicado no dia 28 de março de 2020, o UOL Notícias chamava a renda básica universal de “Vacina contra miséria”. A matéria, disponível neste link, descrevia a iniciativa brasileira do auxílio-emergencial (que não deu muito certo, como bem sabemos) e chamava o conceito da renda básica universal de “dinheiro dado pelo Estado”. Diga-se de passagem, um texto ótimo que reúne diversas informações sobre os auxílios-emergenciais, a renda básica como política permanente e as articulações da sociedade civil em prol da iniciativa, mas que erra em dois pontos, comuns na discussão sobre a renda básica.

O primeiro ponto é chamar de “dinheiro dado pelo Estado”. De onde vem o dinheiro do Estado? Ora, ele não é fruto de impostos pago pelas pessoas? Chamar a renda básica universal de “dinheiro dado” cria uma ótica errada de que o governo passa a ter um papel assistencialista e populista, abrindo margem para a política tradicional (onde políticos, e não gestores públicos, se colocam no papel de salvadores). O outro ponto está na definição da renda básica universal. As parcelas de R$ 600 do auxílio-emergencial estão longe de ser uma renda básica; não só pelo valor, mas pela sazonalidade. Como o próprio nome diz, é um auxílio-emergencial, algo pontual; uma vacina para a “doença” da vez, mas longe de combater problemas crônicos e complexos, como a miséria.

Uma coisa é quase certeza, se já tivéssemos uma renda básica universal estruturada, talvez a discussão em torno da reabertura precoce das atividades comerciais em cidades brasileiras não seria a disputa “economia vs. vidas”. Agora, se a renda básica universal é possível no Brasil (e em outros países) ainda não sabemos, mas a economista Monica de Bolle, da Universidade John Hopkins, nos EUA, resume bem o cenário atual. “A renda básica sempre foi um tema instigante de pesquisa, mas não tinha viabilidade política. Agora, dadas as condições políticas, por que não colocar na mesa o debate de uma renda básica permanente?” 

Imagem Destaque: Por Andre Nery/Shutterstock

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