O legado de Jane Goodall: a mulher que ensinou o mundo a ouvir os chimpanzés

O legado de Jane Goodall: a mulher que ensinou o mundo a ouvir os chimpanzés

Em 1º de outubro de 2025, o mundo se despediu de uma de suas vozes mais reconhecíveis na ciência e na conservação ambiental. A morte de Jane Goodall, aos 91 anos, nos convida a revisitar um percurso que uniu rigor, empatia e uma rara capacidade de comunicação que transformou a maneira como olhamos para os chimpanzés (e para nós mesmos).

O legado de Jane Goodall: a mulher que ensinou o mundo a ouvir os chimpanzés
Gombe, Tanzânia – Fotografia de Hugo Van Lawick/National Geographic Creative

Desde a infância no Reino Unido, Jane mostrava uma curiosidade fora da curva pelos animais e pela natureza. Aos 11 anos, disse à família que um dia viveria na África. Essa certeza cresceu com ela e, em 1960, esse plano virou prática quando Jane iniciou seu trabalho de campo em Gombe, na Tanzânia. Dali surgiram observações que abriram novas portas para a primatologia e consolidaram um método guiado por paciência, escuta e respeito ao animal.

Em 1977, nasceu o Jane Goodall Institute, iniciativa que levou o aprendizado de campo para programas de conservação, educação e trabalho conjunto com comunidades. Em 1991, veio o Roots & Shoots, rede que mobiliza estudantes a tirar do papel projetos locais em benefício de pessoas, animais e meio ambiente. JGI e Roots & Shoots formaram a base de sua atuação para além de Gombe e ajudaram a transformar conhecimento em ação.

Ao longo da carreira, recebeu honrarias que reconheceram esse impacto. Foi promovida a Dame Commander of the Order of the British Empire (DBE) em 2003; e, entre os prêmios, constam o Kyoto Prize e o Templeton Prize (2021). Jane Também foi laureada com o Prêmio Príncipe de Astúrias de Pesquisa Científica e Técnica em 2003. E, em 2025, recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade dos Estados Unidos.

Sua influência alcançou até mesmo a cultura pop: em 2022, a Mattel, em parceria com o Jane Goodall Institute, lançou uma Barbie inspirada em Jane Goodall, feita com plástico reciclado de origem oceânica e certificada CarbonNeutral.

Com esse contexto em mente, vale organizar o que fica em quatro frentes que ajudam a entender a força do seu legado:

Revolução científica no estudo dos primatas

O legado de Jane Goodall: a mulher que ensinou o mundo a ouvir os chimpanzés
Gombe, Tanzânia – Fotografia de Hugo Van Lawick/National Geographic Creative

Em Gombe, Jane derrubou certezas. Ao registrar chimpanzés usando ferramentas para extrair cupins, mostrou que a exclusividade humana não era tão exclusiva assim.

Vieram outras cenas reveladoras, como a caça coordenada de colobus, o cuidado entre mães e filhotes, e a hierarquia que se reorganiza com alianças e rupturas. O episódio que ficou conhecido como Guerra dos Chimpanzés de Gombe expôs a complexidade de conflitos prolongados em outro grande primata.

O impacto foi imediato. A primatologia e a antropologia passaram a enxergar continuidade onde antes havia muros. Estudos de comportamento ganharam recorte mais fino, atento a contexto social e história de vida.

E a pergunta sobre o que nos torna humanos passou a considerar não só o que fazemos, mas como outras espécies pensam, sentem e cooperam.

Abordagem ética e humanística na ciência

Jane optou por nomear os chimpanzés, David Greybeard, Fifi e tantos outros, em vez de tratá-los como números. Esse gesto, contestado por alguns no início, foi um ponto de método. Ao reconhecer indivíduos, pôde acompanhar trajetórias, padrões e relações ao longo do tempo, o que elevou a precisão das análises e abriu espaço para interpretar emoções, estratégias e escolhas.

Daí veio uma ética de campo clara. Observar antes de interferir, respeitar antes de medir, reduzir ao mínimo a perturbação do ambiente, valorizar estudos de longo prazo e a repetição cuidadosa de protocolos. A empatia deixou de ser ornamento e virou instrumento, informando desde o desenho de pesquisa até práticas de bem-estar animal. Esse padrão hoje orienta equipes em diferentes biomas, dentro e fora da África.

Conservação ambiental e ativismo global

O Jane Goodall Institute transformou o aprendizado de Gombe em ação concreta. A atuação combina resgate e reabilitação de chimpanzés órfãos do tráfico, cuidados veterinários e santuários, proteção de habitats com restauração florestal e corredores ecológicos, além de programas comunitários como o TACARE, na região do Lago Tanganica, que integra desenvolvimento local e conservação liderada pelas próprias comunidades. A ideia central é de que a conservação só se sustenta quando a comunidade vê futuro junto com a floresta.

O Roots & Shoots amplia esse alcance em escolas e universidades. Grupos de estudantes diagnosticam problemas locais, definem metas, executam e medem projetos que vão de plantio de árvores e recuperação de nascentes a reciclagem, hortas urbanas e bem-estar animal. Como Mensageira da Paz da ONU desde 2002, Jane conectou esse trabalho de base à incidência pública, enquanto o JGI dialoga com governos e parceiros para fortalecer áreas protegidas e coibir o tráfico de fauna. O resultado é uma ponte entre gesto cotidiano e mudança sistêmica.

Inspiração e legado para gerações futuras

Talvez o maior feito de Jane tenha sido mostrar que ciência e narrativa podem caminhar juntas. Sem formação acadêmica tradicional no início, ela provou que rigor e curiosidade cabem no mesmo caderno. Tornou-se símbolo de liderança feminina na ciência e referência de comunicação pública: cada palestra, livro e conversa era um convite à responsabilidade. Para quem chega agora, fica uma bússola: agir localmente, pensar globalmente, persistir coletivamente.

No fim, o que Jane nos ensinou é que compreender o outro, mesmo quando esse outro tem mãos de chimpanzé e olhos que devolvem perguntas, muda a forma como habitamos o planeta. Seu legado seguirá vivo toda vez que um jovem plantar uma árvore, que uma comunidade se organizar para proteger um fragmento de floresta e que um pesquisador escolher observar com respeito.

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