Movimento da Morte Positiva: É possível inovar até quando o assunto é a morte?

Movimento da Morte Positiva: É possível inovar até quando o assunto é a morte?

Ao redor do mundo, culturas diferentes têm visões e rituais diferentes relacionados à morte e ao luto. No México, por exemplo, a morte é encarada como como uma fase de um ciclo infinito. No país, morte e festa caminham de mãos dadas. Há registros de que, há pelo menos 3 mil anos, as civilizações pré-hispânicas celebravam a passagem para o mundo espiritual dessa forma. Enquanto isso, no Brasil, o assunto é um tabu. Segundo uma pesquisa realizada pelo Studio Ideias, o brasileiro não gosta de falar sobre morte e não se prepara para o momento.

Independente da forma com que esse assunto é tratado, seja de forma positiva ou negativa, a verdade é que todos nós sabemos que a morte é algo inevitável. Ela chegará para todos, mais cedo ou mais tarde. Sabendo disso e de todos os tabus que cercam o tema, existem pessoas ao redor do mundo que estão trabalhando para fazer com que essa experiência seja melhor para todos – tanto para quem vai, quanto para quem fica.

Uma das pessoas que trabalham em busca de uma ressignificação desse acontecimento é Caitlin Doughty, uma das precursoras do que hoje é conhecido com o Movimento da Morte Positiva.

Em 2010, havia se formado recentemente em Ciências Mortuárias e dirigia uma van que carregava onze cadáveres de uma só vez. Seu trabalho era pegar esses corpos em várias funerárias e entregá-los a um crematório central. Ela conhecia novas pessoas todos os dias, mas todas elas estavam mortas. Assim, seu trabalho lhe proporcionava um bom tempo para pensar. Enquanto dirigia a trabalho pelas intermináveis rodovias do sul da Califórnia, Caitlin sonhava em viver em uma cultura que abordasse a morte de forma mais aberta e honesta. Ela acreditava que a mudança só aconteceria com uma indústria funerária melhor, onde as famílias pudessem estar envolvidas no processo e os mortos não ficassem escondidos atrás de portas (ou vans) fechadas.

Então ela começou a se aproximar de pessoas, incluindo profissionais da indústria funerária, acadêmicos e artistas que estavam explorando formas de preparar culturas e pessoas com medo da morte para sua morte inevitável. E assim, em janeiro de 2011, Caitlin fundou a Order of the Good Death, um grupo formado por esses profissionais, acadêmicos e artistas, que querem espalhar o pensamento de que é importante fazer com que a morte faça parte de nossas vidas. E isso significa comprometer-se a encarar seus medos relacionados ao assunto – seja o medo da sua própria morte, da morte daqueles que você ama, da vida após a morte (ou a falta dela), da dor, dos cadáveres, da decomposição corporal ou todos os itens acima.

Para o Movimento da Morte Positiva, aceitar que a própria morte é natural, mas a ansiedade e o terror relacionado a ela, presentes na cultura moderna, não são. É um movimento que acredita que ter uma boa morte faz “parte de uma vida boa”, e que, quando estamos em paz com essa questão, podemos viver melhor.

Além da mudança de pensamento a respeito da morte, também é preciso mudar alguns elementos relacionados a ela. Por isso, existem diversos inovadores ao redor do mundo trabalhando para transformar a forma como “vivemos” a morte. Confira a seguir alguns desses projetos:

Doulas da Morte

A palavra “doula” vem do grego “mulher que serve”. Atualmente, a imagem dessa função está muito ligada às mulheres que dão suporte físico e emocional a outras mulheres antes, durante e após o parto. Mas existem também as doulas da morte, uma profissional (que não é médica) que fornece apoio holístico à pessoa que está morrendo e aos membros da família, ajudando as pessoas que estão, de alguma forma, próximas da morte.

Going With Grace é uma empresa criada pela doula Alua Arthur, que fornece serviços de “planejamento de fim de vida” e ajudam seus clientes a passarem por seus últimos momentos de vida de uma forma tranquila e confortável.

Em uma publicação escrita especialmente para a Fast Company, Alua Arthur contou sobre sua profissão e sua relação com a morte. Ela dá suporte às pessoas que estão próximas da morte e, depois disso, ela também ajuda os membros da família a lidar com as questões acerca da perda do ente querido. Mas ela também trabalha com pessoas saudáveis. Para Alua, “assim que alguém reconhece que um dia vai morrer, é a hora de começar a se preparar para isso”. Então, ela também ajuda essas pessoas a desenvolverem com um plano de fim de vida. Nesse plano, o cliente deixa claro sobre quais são os seus desejos para esse momento e é onde é definida a pessoa que tomará as decisões por eles, seja após a sua morte ou caso não seja possível que eles tomem alguma decisão – como a de desligar o suporte de vida, por exemplo. Alua também ajuda a seus clientes e familiares a reunirem documentos importantes e lidarem com questões burocráticas necessárias.

Ela também ajuda pessoas que têm medo da morte. Para Alua, as pessoas têm mais medo do processo de morrer do que a própria morte; por isso, ela desenvolveu um tipo de meditação guiada. “É como se estivéssemos passando pelo eventual enfraquecimento do corpo, com seus sistemas desligando e sua respiração ficando irregular,” Alua conta. “Muitas vezes, as pessoas experimentam uma sensação de paz depois de passar por esse processo.”

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Redesign da urna funerária e novas formas de sepultamento

Escavações arqueológicas identificaram que, no período pré-histórico, os seres humanos já tinham o hábito de cobrir os mortos com pedras ou enterrá-los. Mas isso acontecia porque os corpos em decomposição atraíam animais, colocando a vida das demais pessoas em risco.

O costume de destinar um local para o sepultamento vem dos hebreus e tomou forma com os cristãos, com a criação de catacumbas em paredes de galerias subterrâneas. Avançando um pouco na história, as áreas internas das igrejas e os espaços adjacentes passaram a ser utilizados para o enterro de pessoas. Mas essa prática criou um problema com o tempo: já não havia mais espaço para abrigar tantos corpos, e o resultado foi a contaminação do solo – o que causou epidemias mortais. Morar perto desses locais era muito perigoso. O ponto de partida para os cemitérios que conhecemos hoje aconteceu na Inglaterra, provavelmente, quando uma lei definiu que os sepultamentos deveriam ser feitos ao ar livre e longe da área urbana.

Atualmente, diversos profissionais estão trabalhando para transformar a maneira como nossos corpos são sepultados, seja fazendo um redesign da urna funerária ou encontrando formas mais sustentáveis de enterrar um corpo.

A designer holandesa Maria Tyakina reimaginou a urna para cinzas de cremação tradicional como uma cúpula futurista. Chamada de Dome, a urna é feita de mármore e vidro pintado à mão, e foi pensada por Maria Tyakina para se adequar melhor à casa dos dias modernos, com o objetivo de mudar a ideia de que urnas para cinzas de cremação são sombrias e só podem estar em mausoléus ou columbários.

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Em 2018, Washington se tornou o primeiro estado dos EUA a legalizar a compostagem humana. E, recentemente, a Olson Kundig Architects divulgou seu projeto para uma instalação pós-morte em Seattle, onde os corpos humanos serão compostados e transformados em terra.

Com previsão de conclusão em 2021, a Recompose Seattle deve ser a primeira instalação do tipo a oferecer compostagem humana em larga escala. De acordo com a Recompose, essa também será “a primeira instalação do mundo a oferecer uma opção sustentável para o atendimento pós-morte”. A empresa destaca várias formas pelas quais a compostagem humana é mais sustentável e ecológica em comparação com outras opções, uma vez que o processo resulta em um solo rico em nutrientes do corpo humano, que pode ser usado para o cultivo de plantas.

O processo usa apenas um oitavo da energia necessária para a cremação e economiza uma tonelada métrica de dióxido de carbono por pessoa. Além de ocupar menos espaço – quando comparamos com o espaço ocupado por corpos enterrados.

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Transformando antigos espaços

De todas as novas soluções para elementos relacionados à morte, não há dúvidas de que a arquitetura é uma das áreas que mais procura redesenhar os espaços físicos em que as “pessoas que ficam” precisam estar após a morte de uma pessoa querida. A funerária Exit Here, de Londres, é um desses exemplos.

O empresário de hotelaria Oliver Peyton se uniu ao Transit Studio para criar a Exit Here, que visa deixar os clientes mais confortáveis com o conceito de morte. Situada no bairro de Chiswick, a Exit Here procura proporcionar ao cliente que precisa planejar um funeral um ambiente que evita a estética tipicamente sombria desses espaços.

A Mortician’s Tale

Criado pelo estúdio Laundry Bear, A Mortician’s Tale é um jogo baseado na narrativa da morte positiva, onde você é um agente funerário encarregado de administrar uma funerária. No jogo, você assume o papel de Charlie, enquanto ela aprende as lidar com os negócios e a indústria. As atividades envolvem preparar os corpos dos mortos (via embalsamamento ou cremação), participação de funerais, interação com os colegas de trabalho, clientes e chefes de Charlie, entre outras coisas.

O jogo – que tem Caitlin Doughty, criadora da Order of the Good Death, como uma de suas inspirações – proporciona ao jogador um olhar informativo, honesto e até bem-humorado sobre o estado atual e o futuro da “indústria da morte” no Ocidente.

A Mortician’s Tale está disponível para PC, Mac e iPhone/iPad. Clique aqui para saber mais.

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