Parto Humanizado: Como é dar à luz em uma sociedade onde tudo é “para ontem”?

Parto Humanizado: Como é dar à luz em uma sociedade onde tudo é “para ontem”?

Nem todas as pessoas do mundo dão à luz, mas todo mundo nasce. Por isso, o parto humanizado deveria ser um assunto de interesse de toda a sociedade.

Tempos antes de assistir ao documentário O Renascimento do Parto (2013), eu sentia que havia algo errado acerca do que é o parto, hoje, no Brasil. Depois do documentário, esse sentimento se transformou em uma certeza. Na minha opinião, esse é um documentário que deve ser assistido por todos – homens, mulheres, pessoas que já têm filhos, pessoas que pensam em ter filhos no futuro e até pessoas que não querem ter filhos. A produção dirigida por Eduardo Chauvet – que ganhou uma sequência, com lançamento marcado para o próximo dia 10 de maio – mostra a importância do parto humanizado em uma sociedade. E é sobre isso que vamos falar hoje.

Mas, afinal de contas, o que é parto humanizado?

Bom, para responder isso, antes é preciso entender quais são os principais modelos de cuidados com a saúde e o nascimento que existem ao redor do mundo. Segundo a antropóloga Robbie Davis-Floyd, estes são dois deles (dos três apontados por Robbie): tecnocrata e humanizado. E precisamos falar sobre isso antes de tudo, pois todo esse movimento que vemos atualmente colocando o parto humanizado em evidência só precisou existir porque, em algum momento, nossa sociedade passou a acreditar que o outro modelo fosse melhor.

No modelo chamado pela antropóloga como tecnocrata, o corpo da mulher é visto como uma máquina, um objeto. Sua mente e seu corpo são tratados separadamente e há intervenções agressivas, com ênfase em resultados imediatos. Nesse modelo, se um parto pode ser feito com tecnologia, ele deve ser feito com tecnologia.

“Hoje em dia, no Brasil, o parto passou a ser um ato cirúrgico, ao invés de ser um evento fisiológico,” diz Fernanda Macêdo, médica obstétrica.

Segundo a OMS, o Brasil é o país com maior índice de cesarianas no mundo todo. Enquanto o índice recomendado é de 15%, 57% dos partos no Brasil são feitos através de cesarianas. Para Robbie Davis-Floyd, não há legítima justificativa, científica ou médica, para um país ter índices de cesariana acima de 20%.

Na rede pública, a taxa é de 40% a 60%; já na rede privada, o índice é ainda alarmante: 70% a 90%. Ainda segundo a OMS, no Brasil, são realizadas mais de 900 mil cesarianas desnecessárias anualmente.

A partir de todos esses números, a seguinte pergunta é inevitável: Por quê?

Para a obstetriz Ana Cristina Duarte, o problema é multifatorial. Não existe um personagem único que é o vilão da história. O que se vê são interesses que se entrelaçam. De um lado, os médicos e os hospitais: uma cesariana programada é mais rápida, mais prática e ainda, aos poucos, criou-se a ideia de que ela também é mais segura. Há planos de saúde que pagam menos de R$ 200 reais por parto ao médico; então, imagine a quantidade de tempo e dinheiro que pode ser ganha realizando várias cesarianas em um dia, no lugar de um parto normal.

Além disso, existe um fator humano importantíssimo nessa equação: o medo que um médico pode sentir ao ter duas vidas em suas mãos. Se uma cesariana pode ser uma opção para atuar diante da natureza inexata do corpo humano, por que não usá-la?

“A maioria das gravidezes são normais e saudáveis, mas os casos complexos são muito marcantes,” diz Fernanda Macêdo.

Do outro lado, os mitos que cercam as mulheres desde sempre: existe a ideia errada de que o parto normal é uma tarefa extremamente difícil, dolorosa e traumática. Tudo isso mina a coragem da mulher e faz com que ela ignore o fato de que o nascimento humano é um evento que foi moldado através de milhões de anos de experimentação, acreditando na ideia de que seu corpo é incapaz de dar conta do processo de nascimento por si só.

“As próprias mulheres acreditam que são incapazes de ter seus filhos de uma forma mais fisiológica e mais natural exatamente porque a cultura contamina a sua autoestima,” diz Ricardo Jones, médico obstetra.

Nós combinamos com o bebê o dia e a hora em que ele vai nascer? Obviamente, não. O ato de parir é algo que exige paciência de todos os lados: paciência para aguardar que o corpo da mulher entre em trabalho de parto (o que pode acontecer até as 42 semanas de gestação) e paciência para que esse trabalho de parto aconteça durante o tempo que ele precisar acontecer para culminar no nascimento de um novo ser humano.

Sem dúvidas, a palavra-chave para mudarmos todo o cenário ao qual chegamos é paciência. E o desafio vem logo em seguida: como ter paciência em um mundo onde tudo é para ontem? E a resposta mais óbvia talvez seja a informação.

Será que uma mulher aceitaria passar por uma cesariana desnecessária se ela soubesse realmente como um parto natural deve ser, sem se deixar influenciar pelo desserviço que a TV e o cinema fizeram durante anos ao retratar esse momento como algo tão traumático? Ela aceitaria passar por uma cesariana desnecessária se soubesse que isso pode aumentar consideravelmente os riscos de complicações durante e após o parto, para a mãe e para o bebê? Certamente, não.

“A cesariana é uma ótima cirurgia que salva vidas todos os dias, mas ela não é para ser feita em todas as pacientes, de uma maneira desnecessária, fora do trabalho de parto,” explica Fernanda Macêdo.

Mesmo assim, a cesariana não é a vilã da história. Quando performado de forma incorreta, um parto normal também pode ser prejudicial para a saúde da mãe e do bebê, além de causar um dano psicológico difícil de ser reparado. E a violência obstétrica também mora aí. Centenas de mulheres relatam ter vivido o mesmo pesadelo: profissionais que não esperam o trabalho de parto acontecer, induzem o trabalho de parto, rompem a bolsa, checam a dilatação frequentemente para ter certeza de que a “máquina” está trabalhando bem e de que o cérvix está dilatando um centímetro por hora. E se essa máquina não está funcionando direito, a mãe recebe mais ocitocina sintética.

Infelizmente, esse é só o início de uma série de violências que acontecem até mesmo após o fim do trabalho de parto, que vão desde agressões verbais, privação de comida, água e mobilidade, passando pela Manobra de Kristeller (que é altamente contraindicada pela OMS) e terminando na episiotomia e no chamado “Ponto do Marido”, que, como explica a ginecologista e obstetra Flávia Maciel Aguiar, nada mais é do que um ponto que se faz ao término da sutura de uma episiotomia, onde se “aperta” a entrada da vagina, com o intuito de torná-la mais estreita, teoricamente aumentando a satisfação sexual do marido.

Você teria vontade de ter mais um filho após ter sua vagina chamada de “parquinho de diversões” por um médico, após o part ode seu primeiro filho (como é mostrado no trailer de O Renascimento do Parto 2, que você pode assistir ao final dessa publicação)? Ou então, após apenas ler o parágrafo anterior do texto? Uma cesariana eletiva parece ser um paraíso após isso, sem dúvidas.

E se existisse uma terceira opção? Sem procedimentos desnecessários, onde o tempo do bebê é respeitado e a mulher é o centro de tudo?

O parto humanizado é um suspiro de esperança em meio a esse mar de notícias ruins e histórias tristes.

Ao ler “parto humanizado” você provavelmente foi transportado para uma sala com uma iluminação baixa e uma mulher em uma banheira, enquanto uma música zen toca ao fundo. Mas não é apenas disso que o parto humanizado se trata. Ele pode até acontecer nesse cenário que eu acabei de descrever, mas também pode acontecer na cama de um quarto de hospital, em uma casa de parto, em casa, ou em qualquer outro lugar onde a mulher se sinta segura para viver aquele momento; ele pode ser natural, com anestesia ou pode até mesmo ser uma cesárea (sim!).

O parto humanizado acontece quando a vontade da mãe e as condições fisiológicas do nascimento são respeitadas, quando cada momento do parto e cada momento das primeiras horas de vida do bebê são tratados com delicadeza.

Como explica a antropóloga Robbie Davis-Floyd, no parto humanizado o corpo e a mente estão conectados, mãe e o bebê não são objetos, mas sim indivíduos, que devem ser tratados com respeito e dignidade durante o momento do nascimento do bebê, e não só atendendo as escolhas da mãe nesse momento, mas também, antes de tudo, fazendo com que ela entenda verdadeiramente quais são suas opções e, principalmente, garantindo que ela tenha opções.

“Se você só oferece para ela um parto ruim, cheio de intervenção, violento, deitada de perna aberta, ou uma cesárea marcada, ela não tem opção, ela não tem escolha,” continua Ana Cristina Duarte. “Agora, se ela puder escolher tudo o que diz respeito ao parto dela, ao nascimento do filho dela, aí você tem um leque enorme de opções. Se ela estiver consciente das escolhas, ela vai ter um bom parto, independente do que ela escolheu.”

Você pode assistir ao documentário O Renascimento do Parto na plataforma de filmes do YouTube (com preços a partir de R$ 3,90), clicando aqui. Para conferir o trailer de O Renascimento do Parto 2 – que estreia nos cinemas em 10 de maio –, assista ao vídeo abaixo.

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