O capitalismo está morto! Uma carta aberta à humanidade e o impacto dos bancos na mudança climática

O capitalismo está morto! Uma carta aberta à humanidade e o impacto dos bancos na mudança climática

O capitalismo está morto. A frase pode soar polêmica, mas começo o texto de hoje com a mesma frase que Jeremy Desir iniciou sua “Carta Aberta à Humanidade” (“Open Letter to Humanity”, em inglês). Para entendermos o impacto desta carta, precisamos entender um pouco mais sobre o seu autor. Executivo do HSBC, especialista em análise quantitativa e qualitativa de dados, matemático formado pela Université Jean Monnet Saint-Etienne (uma das melhores universidades da França) e mestre em ciência pela Imperial College London, Desir tem um currículo invejável. Foi se apoiando em toda essa experiência, que o matemático escreveu: “O capitalismo está morto. E embora essas terras virgens que estão prestes a serem esmagadas, essas vidas frágeis que estão prestes a se afogar, possam nunca ver seu futuro florescer, o capitalismo está realmente morto em sua essência, como um conceito e uma força estruturadora de nossos afetos.” Ele continua, “quanto mais cedo soltarmos nossas armas com humildade diante dessa realidade inevitável, mais densamente a vida terá a chance de se regenerar em sua diversidade.”

Isso é apenas o começo da carta.  De acordo com Desir, que desenvolveu um relatório com mais de 50 páginas sobre o impacto dos bancos na emergência climática, “pela primeira vez em sua história, o homem é capaz de saber com uma unanimidade internacional as causas precisas da sua quase extinção, mas também as trajetórias a serem seguidas drasticamente se ele quiser evitá-lo.” Em uma atualidade, onde tanto se discute mudanças climáticas e futuro da sociedade, a afirmação poderia passar despercebido, se não fosse feita por uma pessoa tão ligada ao mercado econômico. O relatório de Desir é tão impactante, que o próprio executivo pede demissão em sua carta.

Segundo ele, – citando o Dia da Sobrecarga da Terra – se a população mundial vivesse como, por exemplo, EUA ou Austrália, seriam necessários 5 planetas Terras. Já como o Brasil, seriam necessárias quase 2 planetas. Em outras palavras, “o colapso da civilização moderna através da escassez de energia, esgotamento de recursos, perda de solo e poluição são todos os sintomas de um único problema maior: o crescimento. (…) Sua forma e ideologia modernas são o de mercado livre dominante e capitalismo desregulado. Como o sistema financeiro exige crescimento sem fim, é improvável que (uma possível) reforma tenha sucesso.”

Desir explica mais sobre a situação, ao afirmar que: “Elaborei um relatório de 50 páginas sobre a alarmante inadequação da resposta dos bancos à crise climática, bem como várias recomendações, e o encaminhei na segunda-feira, 15 de julho, para meu líder de equipe, PhD em Física e ex-trader quantitativo. Este relatório final traz fatos incontestáveis e análises, mostrando a urgência da nossa necessidade de agir drasticamente e com coragem. Ele também enfatiza as respostas institucionais dadas pelo setor bancário, além da reconhecida ineficiência e impotência das medidas e estruturas desenvolvidas pelos reguladores, supervisores e bancos centrais.” Em resumo, o especialista não só fala que o modelo de consumo (e capitalismo tradicional) está impactando diretamente no meio ambiente, como também afirma que as respostas dadas pelo setor bancário – e seus órgãos reguladores – são pífias.

“Diante dessa conspiração internacional de poderes financeiros para manter esse obscurantismo capitalista assassino e para entorpecer a consciência de seus melhores recursos intelectuais diante das causas e conseqüências de nossa crise ecológica e climática, tomo a decisão de me demitir publicamente por meio desta carta”
— Jérémy Desir-Weber, em “Carta Aberta à Humanidade” (Open Letter to Humanity).

Ainda sobre o relatório, no item 2, intitulado de “Consequências financeiras, científicas, e tecnológicas do crescimento industrial em 2020”, Jeremy Desir apresenta dados sobre os impactos da mudança climática, fome e a recente debandada dos EUA do Acordo de Paris. Segundo ele, “a economia mais poderosa do mundo decidiu retirar-se do Acordo de Paris, sem qualquer risco de sanções internacionais, e sua economia está em melhor forma do que nunca.” Sobre o impacto das toneladas de emissão de CO2, Jeremy explica que, “se amanhã de manhã, eliminarmos todas as formas de emissão de CO2 feitas pelo homem, dentro de um século, ainda teremos 40% do excedente atmosférico presente (…) Por causa dessa considerável inércia química do CO2 no ar, o que quer que façamos agora, as consequências da mudança climática aumentarão nos séculos vindouros (são inevitáveis).”

O especialista conclui o relatório com uma visão assustadora. “A ciência e a tecnologia tornaram-se tão sofisticadas e poderosas na história recente da humanidade, que os gigantes da tecnologia, assim como os bancos, agora têm uma influência centralizada em todo o mundo, como nenhum império jamais sonhou. Isso traz responsabilidades inacreditáveis na resolução de uma crise global e imediatamente.” Ele ainda questiona, “existe alguma chance de enfrentar esse desafio sem precedentes, se as instituições mais poderosas não colaborarem totalmente e seguirem com as suas agendas usuais, competitivas e irracionais, alinhadas com o crescimento?”

“convido minha comunidade de pesquisadores e engenheiros, principalmente aqueles que trabalham em bancos importantes ou em gigantes da tecnologia. Aqueles para quem as ‘sereias do dinheiro’ não terminaram para enfeitiçar seu senso de ética e seu amor pela ciência, a declarar uma greve geral.”
— Jérémy Desir-Weber, em “Carta Aberta à Humanidade” (Open Letter to Humanity).

Confesso que a parte mais surpreendente de toda essa história, pelo menos para mim, não são os diversos links e referências sobre o caos que o nosso planeta se tornou (e o assustador futuro que nos aguarda, caso não façamos uma mudança acentuada nos próximos anos), mas ver alguém que faz parte deste sistema (financeiro), de forma tão intrínseca, não apenas lançar ao mundo um aviso sobre os males da forma como vivemos e consumimos, mas declarar uma guerra – mesmo que pessoal e solitária.

Sim, eu sei que você pode estar se perguntando “ele fez tudo isso e pediu ‘emprego’ no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)? Será que não é só um cara de pau querendo mudar de área?” A resposta é… Pode ser que sim. Não dá para saber (com 100% de certeza) o que faz uma pessoa jogar tudo para o alto e escrever uma carta aberta, arriscando emprego e carreira. Mas eu olho para o relatório, com seus dados e mais dados, e não consigo deixar de pensar: Será que realmente não está na hora de repensarmos a forma como vivemos e nos relacionamos com o planeta? E não estou falando em apenas rever o consumo de energias não-renováveis e/ou o volume de CO2 que emitimos diariamente. Estou falando em rever, de forma drástica a forma como vivemos. Seria uma repaginada tão grande em nossas vidas, que talvez os modelos necessários para esta mudança ainda nem existam. Mas as pessoas que podem fazer isso, sim.

Leia também:

  • As previsões da Singularity University até 2038 – Parte I: A próxima década (leia aqui)
  • As previsões da Singularity University até 2038 – Parte II: O futuro (leia aqui)
  • 2020: Alimentos orgânicos, crise financeira e outras previsões (leia aqui)

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Imagem destaque: Africa Studio/Shutterstock

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