Detroit Become Human: Um jogo sobre empatia e humanidade

Detroit Become Human: Um jogo sobre empatia e humanidade

O que faz de nós humanos? Se essa pergunta fosse feita nos meus tempos de escola, a resposta seria fácil, somos seres racionais e dotados de inteligência. Mas o mundo mudou. Hoje já vemos algumas inteligências artificiais com capacidades superiores ao cérebro humano. Elas ainda não possuem consciência, mas conseguem processar cálculos de forma infinitamente mais rápida que qualquer matemático. Mas o que acontece quando uma inteligência artificial passa no Teste de Turing? Ou melhor, o que nos torna humanos quando androides avançados se assemelham a nós, no mínimos detalhes? Para nos aprofundarmos nesta questão, precisamos voltar no tempo.

De Turing a Detroit Become Human: Os caminhos da inteligência artificial

Nesta segunda-feira (15), o Banco da Inglaterra anunciou que o matemático Alan Turing será homenageado e terá o seu rosto estampado nas notas de 50 libras a partir de 2020. Escolhido em uma lista de mais de 200 mil nomes, o britânico “‘foi um matemático excepcional cujo trabalho teve um impacto enorme em como vivemos hoje. Como o pai da ciência da computação e inteligência artificial, assim como herói de guerra (ao decodificar a Enigma, máquina usada para criptografar as mensagens nazistas durante a 2ª Guerra Mundial), as contribuições de Alan Turing foram muito variadas e inovadoras’, comentou Mark Carney, governador do Banco da Inglaterra.”

Apesar da inteligência artificial e dos autômatos serem coisas discutidas há tempos (o filósofo René Descartes no seu escrito de 1637, intitulado Discurso sobre o Método, já comenta o assunto), foi Turing que deu um grande passo neste cenário ao inserir, em 1950, o “Teste de Turing”, que avalia a capacidade de uma máquina exibir comportamento inteligente equivalente a um ser humano ou indistinguível. Foi também no início da década de 50 que Isaac Asimov, o famoso autor de ficção científica, publicou o livro “Eu, Robô”.

Muito mais que um clássico da literatura, o livro reúne as “3 Leis da Robótica”, diretrizes usadas por pesquisadores de inteligência artificial até os dias de hoje. São elas: 1. Um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal; 2. Os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; e 3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.

De Turing e Asimov até os dias de hoje, muita coisa evoluiu. Mais de 60 anos se passaram desde a publicação do artigo Computing Machinery and Intelligence (escrito por Alan Turing, este foi o primeiro trabalho a introduzir o conceito base do teste homônimo) até que, em 2014, pela primeira vez um programa de computador enganou dez jurados no Teste de Turing. Ao tentar distinguir uma máquina de um humano, 10 dos 30 avaliadores foram convencidos de que o programa era um menino ucraniano chamado Eugene. Ao contrário do Teste de Turing, as 3 Leis da Robótica ainda prevalecem, afinal, ainda não precisamos questioná-las.

Eis que chegamos ao game Detroit Become Human (DBC), lançado em 2018. Apesar de ser um entretenimento, o jogo eletrônico da Quantic Dream traz uma série de reflexões sobre as relações entre homem e máquinas, e sobre a definição de o que é ser humano do ponto de vista de alguém de fora, sob o olhar de uma máquina. Encarnando três personagens androides diferentes, o jogo coloca o jogador em uma Detroit de um futuro próximo, em 2038, onde os Divergentes – androides que manifestam emoções humanas – buscam direitos iguais e liberdade.

Detroit Become Human: Um jogo sobre empatia e humanidade

Nota do editor: [CONTÉM SPOILERS] Daqui em diante o texto contém uma série de informações sobre a história de Detroit Become Human. Caso você queira jogar, sugiro parar a leitura neste ponto e retornar após o jogo.

Como dito no parágrafo anterior, o jogo se desenvolve pelas histórias de três personagens. Connor, interpretado pelo ator Bryan Dechart (“True Blood” e “Remanescentes – Esquecidos por Deus”), é um androide de última geração designado para o papel de investigador especial da polícia de Detroit. Frio e calculista, ele é responsável por encontrar androides rebeldes.

Já Kara, interpretada por Valorie Curry (“A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2” e “Bruxa de Blair”) é uma androide criada para atividades domésticas e, designada por seu dono, a cuidar da pequena Alice. O grande problema é que, logo ao sermos apresentados a personagem, percebemos que ela está retornando da “assistência técnica”, pois um “acidente” tinha destruído seu sistema. Apesar de não lembrar dos abusos anteriores de seu dono, ao perceber que este tem um temperamento instável e agressivo, a androide foge com a pequena Alice para começarem uma nova vida juntas.

Por fim, Markus, interpretado pelo ator Jesse Willians (“Grey’s Anatomy” e “O Segredo da Cabana”) é um androide enfermeiro que se envolve em um acidente com o filho do seu dono, Leo. Ao tentar se proteger, Markus acerta, o que acredita ser um golpe fatal no jovem, acaba sendo destruído e indo parar em um lixão, onde renascerá determinado a conduzir um grupo de divergentes a lutar pela liberdade dos androides.

Reflexões e realidades de uma Detroit utópica (ou não)

Agora que já apresentei os três personagens, vamos ao que interessa, as reflexões de Detroit Become Human. Um dos primeiros pontos apresentados no jogo são os abusos e violência que os androides recebem dos humanos. Logo no início, um grupo de desempregados protestam contra o uso de robôs em tarefas humanas. Ao encontrar com Markus, o grupo tenta bater no androide, mas é impedido por um policial que diz que irá multar o grupo, caso eles destruam o robô. Veja que ponto interessante, apesar das feições humanas e a inteligência, os androides são vistos como máquinas e propriedades de alguém. Destruir um androide não é assassinato, mas um crime contra o patrimônio. Isso é explícito nas cenas em que mostram as lojas de vendas de androides e as cápsulas de aluguéis de parceiros sexuais androides.

Detroit Become Human: Um jogo sobre empatia e humanidade

Detroit Become Human: Um jogo sobre empatia e humanidade

Paralelo com a realidade: No estudo “Five Terrorist Dystopias”, publicado em janeiro de 2019, os pesquisadores espanhóis Manuel Torres Soriano e Mario Toboso Buezo afirmam que, em uma situação extrema, a tecnologia pode ser vista como uma ameaça aos empregos humanos, desencadeando uma nova onda de terrorismo em 2040. Isso não seria algo novo, já que – no século 19 – trabalhadores ingleses insatisfeitos com a Revolução Industrial destruíram máquinas. O movimento ficou conhecido como Ludismo e, atualmente, alguns países têm visto o surgimento de ondas Neoludistas.

Já na história da androide Kara, de imediato achei que ela tinha sido destruída por consequência de um abuso sexual extremamente violento (depois você descobre que foi “apenas” uma surra). No mundo real, a robô Sophia, um sistema bem mais simples do que os androides de Detroit Become Human, tornou-se o primeiro robô com cidadania. A Arábia Saudita concedeu cidadania ao protótipo de androide criado pela Hanson Robotics. Ou seja, se algum ato de violência atingisse Sophia em território saudita, em teoria, ela teria proteção jurídica.

Outro ponto importante na história do jogo é o encontro do androide Connor com o seu criador, o cientista Elijah Kamski. Ex-CEO da CyberLife, a empresa responsável pela criação dos androides de Detroit Become Human, e criador dos primeiros modelos, ele afirma que o Teste de Turing já não é tão efetivo e propõe o Teste de Kamski, que tem como objetivo medir se as máquinas possuem algum senso de empatia. Nele, Kamski propõe a Connor que atire em um outro androide. Se ele atirasse, demonstraria que são apenas máquinas que recebem comandos. Se não atirasse, demonstraria que Connor possui empatia por um semelhante.

A reflexão sobre empatia é algo que permeia o jogo todo. Como estamos no papel dos androides, fica mais fácil entender a segregação por parte dos humanos. Além disso, em determinado momento do jogo, o governo cria campos de desativação – já que os androides se tornaram uma ameaça – lembrando muito campos de concentração nazistas. Mas, se eles são máquinas sendo desativadas, por que sentimos empatia por Kara e Alice (sim, no decorrer do jogo você descobre que Alice, a criança protegida pela androide doméstica é uma androide criança) ao caminharem rumo a câmara de desativação?

Estes são apenas alguns destaques de Detroit Become Human. O jogo em si possui diversas alternativas e cada ação gera uma reação e diferentes consequências. Além disso, vale a pena observar uma cidade inteligente implementada em uma cidade real, onde semáforos inteligentes dividem espaço com lojas de conveniência tradicionais, e carros autônomos (e sem volantes) não substituem outros modais de transporte, como ônibus e metrô. Por fim, o jogo faz uma pesquisa – coletando respostas com jogadores pelo mundo todo – e apresenta os resultados:

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